sexta-feira, 11 de julho de 2014

Go, Deutschland!

Futebol é simbolismo puro. Afinal, por que os torcedores de esportes coletivos aplicam tanto do seu capital emocional em uma instituição privada com evidentes fins lucrativos? Porque - além disso - um clube de futebol é um símbolo, uma herança cultural que se mistura com a história da própria cidade, da região, do país, da família e da biografia de cada torcedor. Idealmente, não se escolhe um clube: ele é imposto pelas circunstâncias. O principal determinante usualmente é a localização geográfica, pois (por exemplo) brasileiros tendem a torcer para times do Brasil, e paulistas tendem a torcer para os times de São Paulo. É verdade que há inúmeras exceções, e (por exemplo) em muitos Estados se torce para times de fora, principalmente para os times do eixo Rio-São Paulo, o que é uma tristeza do meu ponto de vista. Na realidade, eu defenderia até um âmbito mais restrito do que o país e o Estado, pois acho que se deve torcer para um time da sua cidade. (Ou como disse um amigo meu, torcedor do Zequinha, para um time do seu bairro.) Mas desconte dessa minha opinião que eu nasci e cresci em Porto Alegre, uma cidade privilegiada com relação ao futebol.

Porto Alegre, sede da maior rivalidade futebolística do Brasil.

"Quem não tem rival, aproveita o futebol pela metade" é uma máxima que eu sustento, e o Gre-Nal é sem dúvida o maior clássico do Brasil. (O maior do mundo eu fico na dúvida entre Boca Juniors e River Plate ou Fenerbahçe e Galatasaray.) O Rio Grande do Sul é o Estado da Federação com a maior capacidade de se dividir ferozmente em dois, com base naquele sentimento tão típico da espécie humana de classificar o mundo em "nós versus eles" (capacidade notável também na Argentina e na Turquia, onde ocorrem os outros dois clássicos citados acima). Essa habilidade talvez seja explicada pela posição peculiar da cultura gaúcha, que desenvolveu um forte bairrismo ao se ver no meio do caminho entre a belicosa cultura do Pampa (junto com Argentina e Uruguai) e a cultura do resto do Brasil. O futebol é uma guerra ritualizada, e - em uma cultura rivalista como a gaúcha - a neutralidade é difícil de aceitar. Tanto é assim que a pergunta dicotômica e regionalista que muitas vezes se segue ao "qual teu nome?" quando um adulto é apresentado a uma criança aqui no Sul é: "e tu é gremista ou colorado(a)?". Se o adulto escuta como resposta da criança que ela torce para o time adversário, o pequeno pode esperar de volta uma cara de desgosto e palavras de desaprovação por parte do grande. Mas se descobrir que a criança é do mesmo time, o adulto se identifica e oferece calorosos incentivos. E assim vem sendo forjado ao longo de várias gerações o nosso racha futebolístico. O lado bom disso é que, por décadas, as pesquisas sobre as preferências clubísticas apontaram o Rio Grande do Sul como uma exceção no Brasil: era o único Estado que não se dobrava à influência homogeneizante do centro do país, pois nenhum time do eixo Rio-São Paulo chegava a pontuar mais do que 1% entre a torcida. O lado ruim é a nossa rivalidade futebolística ter sido frequentemente alçada a níveis muito acima do aceitável.

Gre-Nal: escolha seu lado.

Eu torço para o Sport Club Internacional, e posso afirmar que não tive escolha nessa questão. (E temos alguma escolha sobre qualquer coisa em nossas vidas? OK, não vou me aprofundar no eterno debate sobre a existência ou não do livre arbítrio, mesmo tendo uma opinião.) Sou de Porto Alegre, e tanto meus avós maternos quanto meu pai são colorados (minha mãe se diz gremista, mas ela tem coisas mais importantes com o que se preocupar). Meus avós ajudaram a levantar o Gigante da Beira-Rio na década de 1960, e desde quando eu era pequeno me levavam com frequência aos jogos, nas cadeiras perpétuas que puderam ser adquiridas por quem ajudou a erguer o estádio. Lembro bem de ir em jogos de Gauchão com arquibancadas quase vazias, e em jogos dos campeonatos nacionais com mais público (com torcida, obviamente, é muito melhor).

Beira-Rio como eu conheci: cobertura parcial, cor de concreto e pista atlética.

Meu primeiro ídolo no futebol foi o goleiro Taffarel, um símbolo da época que o Inter viveu na segunda metade da década de 1980, pois era um excelente goleiro que não levantou uma taça sequer pelo Inter, mas que - depois de sair em 1990 - sagrou-se tetracampeão pela seleção brasileira em 1994. Portanto, a minha carreira de torcedor começou durante uma fase tenebrosa do Inter. Talvez até seja melhor que eu não tenha lembranças das derrotas para o Flamengo e para o Bahia nas finais dos Campeonatos Brasileiros de 1987 e 1988, e nem da eliminação para o Olímpia do Paraguai nas semifinais da Libertadores de 1989. Mas lembro bem da década de 1990, na qual o Grêmio - apesar do início ruim com o primeiro rebaixamento em 1991 e o retorno vergonhoso à primeira divisão em 1992 - conseguiu depois disso empilhar títulos entre 1994 e 1999. Os únicos oásis de alegria num deserto de tristezas coloradas foram a Copa do Brasil de 1992, o Gauchão de 1997, o futebol do zagueiro paraguaio Gamarra (entre 1995 e 1997) e o 5 a 2 (o "cinco muito") em cima do Grêmio em pleno Olímpico no ano de 1997, liderado pelo atacante (Uh!) Fabiano. Ou seja: um título nacional, um título estadual, um jogador e um jogo. Não deveria surpreender que nessa época o Inter era um time que vivia de passado, principalmente das glórias da década de 1970, quando Figueroa e Falcão vestiam vermelho, e quando se conquistou o octacampeonato gaúcho e três campeonatos brasileiros (fomos o primeiro tricampeão do país).

"Cinco muito": uma das poucas alegrias coloradas na década de 1990.

Por sorte, eu resisti a tentação tricolor (azar dos que não o fizeram) e tive o prazer de testemunhar entre 2005 e 2011 uma espetacular virada de gangorra por parte do Inter. Depois de duas Libertadores, um Mundial, duas Recopas, uma Sul-Americana e, de bônus, um segundo rebaixamento do Grêmio, não tenho mais tanto do que reclamar. Vi o eterno Fernandão jogar. Mesmo que o Gauchão seja um prêmio de consolação em tempos de vacas magras, a verdade é que os Estaduais são relativamente desprezados pelos clubes grandes, que não deveriam participar dos Estaduais há pelo menos uma década. Portanto, o Grêmio vive - na prática - uma seca de títulos de 13 anos, desde a conquista da Copa do Brasil em 2001, e a tentação colorada deve ter espreitado várias crianças gremistas neste princípio de milênio.

Mundial de 2006: maior marco da virada histórica.

De qualquer modo, a dupla Gre-Nal já trouxe para Porto Alegre - na somatória - cinco Copas do Brasil, cinco Brasileiros, uma Sul-Americana, três Recopas, quatro Libertadores, uma Copa Intercontinental e um Mundial (ou dois Mundiais, se quem estiver fazendo a contabilidade for gremista). Uma rivalidade de respeito em níveis nacional e internacional. Simpatizo amplamente com os gremistas, até porque é o segundo time com maior probabilidade de eu ter virado torcedor. O paradoxo do "nós versus eles" é que "eles" precisam estar próximos o suficiente de "nós" para que a rivalidade prospere. Esse é um fato que os mais fanáticos teimam em negar: não há nada mais perto de ser gremista do que ser colorado, e vice-versa. Percebi isso com grande clareza quando me mudei para o Rio de Janeiro, pois o background cultural compartilhado faz com que a flauta em cima dos torcedores de times cariocas empalideça perante a flauta entre os torcedores da dupla Gre-Nal. Discutir com os gremistas da linhagem racional (aqueles com os quais é possível provocar e ser provocado de modo civilizado) é muito melhor que discutir com os torcedores dos times do Rio.

Gremistas e colorados: os próximos que são distantes.

Lembrei de tudo isso vendo a Copa do Mundo no Brasil, a primeira que vejo desde que me mudei para o Rio de Janeiro. Por mais que aqui a mobilização em torno da Seleção Brasileira seja maior (na comparação com o Rio Grande do Sul), o baixo nível de ligação emocional da torcida brasileira como um todo para com a sua Seleção (em comparação com seus clubes) ficou evidente nos primeiros jogos do Brasil em casa. A campanha de última hora para emplacar algum cântico de torcida novo foi uma medida desesperada para que não jogássemos mais como "visitantes em casa", na definição precisa dos mexicanos sobre o jogo contra o Brasil na primeira fase. A minha hipótese é que falta rivalidade para a Seleção brasileira. A imprensa esportiva e as campanhas publicitárias exploram seguidamente a rivalidade entre Brasil e Argentina. De fato, é o rival mais apropriado para nossa Seleção, considerando-se tanto o nível do futebol, quanto a proximidade cultural e geográfica dos dois países. Contudo, eu percebo que a torcida brasileira não abraça com a mesma convicção essa causa como abraça a rivalidade entre os clubes, e a pobreza do "Olê, olê, olê, olê, Brasil, Brasil" e do "Sou brasileiro com muito orgulho" é um sinal claro desse fenômeno.

Copa de 1990: Maradona contra seu rival favorito.

Desde antes de a Argentina ter se classificado para a final da Copa, eu já julgava impossível não me admirar com a torcida argentina que invadiu o Brasil. Quem acompanha o futebol de lá, já conhece bem o fervor do "aliento" dos "hinchas" para os seus clubes. O Rio Grande do Sul (mais especificamente a torcida Geral do Grêmio) foi a porta de entrada para (re)importarmos esse estilo de torcer que já alcançou até clubes do Nordeste, um estilo baseado na cantoria ininterrupta, em letras mais elaboradas, nas bandeiras sempre tremulando, e nas fitas e papéis picados jogados ao campo. Uruguai, Chile, Paraguai e outros países sul-americanos também adotam esse estilo de torcer, e o interessante é que - ao contrário do Brasil - todos esses países conseguem transpor facilmente o engajamento com os clubes para as suas respectivas seleções.

La hinchada argentina: mostrando como se torce numa Copa em casa.

A minha hipótese é que um dos fatores que mais contribuem para esse fanatismo dos argentinos pela Albiceleste é que eles levam muito mais a sério a rivalidade com o Brasil. É o "eles" que fortalece o "nós", e - na mesma linha do "Brasileiro que amargado se te ve" - o cântico "Brasil, decime que se siente" já é o grande hit desta Copa, criado especialmente para tirar onda com a cara dos brasileiros durante o mundial. Digo, por experiência própria, que ao conviver algum tempo (em 2005 e 2006) com brasileiros e argentinos nos Estados Unidos nunca me senti tão ligado ao Brasil, à Seleção e, sim, à Argentina. Fiquei muito amigo dos argentinos através do "mate" (chimarrão), do "asado" (churrasco), do "che" (tchê),  do bairrismo e do futebol. Eles puxavam a conversa sobre o futebol, o que era muito divertido da minha perspectiva brasileira, pois a Seleção ostentava a "tríplice coroa": era a atual campeã da Copa do Mundo (sendo que a Argentina havia sido eliminada na primeira fase), da Copa das Confederações (4 a 1 em cima da Argentina na final) e da Copa América (final também sobre a Argentina, vencida nos pênaltis). Relembre que o Inter vivia os últimos meses da má fase que já durava duas décadas, mesmo esboçando seus primeiros voos internacionais ao ser eliminado duas vezes pelo Boca Juniors nas Copas Sul-Americana de 2004 e 2005 (ambas vencidas pelo Boca, sendo que na segunda eu fui o único brasileiro a assistir a final junto com os amigos xeneizes em um bar de mexicanos). Portanto, imaginem o meu contentamento em ter as vitórias da Seleção para importunar os argentinos quando o assunto era futebol.

Tal qual o Gauchão, a Copa das Confederações só tem graça se tiver clássico na final.

"Quem não tem rival, aproveita o futebol pela metade", e o Brasil vem aproveitando a sua Seleção pela metade. Por isso, sou a favor de fomentar a nossa rivalidade com os argentinos. Quem torcer para a Argentina no próximo domingo está, na minha opinião, minando a precária relação entre os torcedores brasileiros mais fiéis (aqueles que acompanham seus clubes) e a Seleção. Os argentinos estão loucos de faceiros com o 7 a 1 que levamos da Alemanha na semifinal, e o meu resultado ideal para a final é uma goleada ainda maior da mesma Alemanha em cima da Argentina. Assim como o vexame brasileiro de 2014 reposicionou a tragédia (agora honrosa) do Maracanazo de 1950, só um Maracanazo deles nos aliviará da dor do Mineiratzen. (E desse fenômeno os colorados entendem bem, pois a derrota pro Mazembe em 2010 manchou não apenas a vitória na Libertadores de 2010, como também eclipsou a flauta sobre a vitória do Ajax em cima do Grêmio em 1995.)

Mineiratzen: o Maracanazo não parece tão ruim agora.

Contudo, jamais confunda rivalidade com ódio e violência: admiro a seleção argentina assim como admiro o Grêmio, e quero distância dos fanáticos idiotas de todos os lados, inclusive do Inter. (Ainda não encontrei fanáticos pelo Brasil desse tipo, em conformidade com o que foi discutido acima.) Por mais esquizofrênico que possa soar, torço contra Argentina e contra o Grêmio, mesmo que as conquistas de ambos engrandeçam, respectivamente, o Brasil e o Inter. O futebol certamente não obedece os ditames da razão (nem os seres humanos, completaria o filósofo David Hume), e é por isso que domingo vou torcer pra Alemanha 8 x Argentina 0.

Exato. O mesmo vale para Brasil e Argentina, e, ilogicamente, torcerei pela Alemanha no domingo.

Go, Deutschland!

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