terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Memórias



A memória pode ser traiçoeira, e muitas vezes ela é. Lembro vagamente de ter lido ou escutado a seguinte frase de alguém (Christopher Hitchens?): o ateísmo é o início de todos os questionamentos. Acho que minha criação sobre religião foi meio peculiar, pois meus dois pais eram marxistas. A mais devota na família era minha vó Marília, que ia todo domingo à missa na Igreja de São Pedro, mas que jamais tentou me influenciar de qualquer modo. Fui batizado (não lembro), mas não fiz catequese nem primeira comunhão. Nunca frequentei igreja alguma. Minha mãe (marxista) pediu para que eu não assistisse às aulas de religião (leia-se: cristianismo) na 1ª ou 2ª série. A mim, pouco fazia diferença: era uma matéria que não rodava, logo, em termos práticos, indigna de preocupação. E assim ia eu à biblioteca, ficar lendo livros enquanto meus colegas "só ficavam desenhando Jesus": a descrição que dei quando pedi à minha mãe (marxista, mas do tipo mais democrático) para assistir a aula de religião e ela deixou. Nunca mais quis voltar à aula de religião de novo. E assim, desde sempre, nunca acreditei em deus.

A memória também pode ser muito precisa em momentos aparentemente banais de nossa vida. Eu lembro que na 6ª série, uma professora de português pedir, no primeiro dia de aula, que os alunos respondessem a uma série de perguntas rápidas, de natureza pessoal: nome? idade? mora com quem? o pai trabalha em quê? e a mãe? gosta de fazer o quê nas horas vagas? acredita em deus? E, depois de um tempo suficiente (julgado conforme o aumento no volume das conversas), a professora pediu para que cada um dos alunos fosse à frente e lesse suas respostas. Uma aula para todos se apresentarem, ou - no meu ponto de vista - uma aula projetada pela professora para ela não ter que dar aula. Muitos detalhes se perderam, mas lembro com perfeição que aquela pergunta estava: acredita em deus? E lembro porque foi a única coisa que gravei a ponto de comentar com minha mãe, e ela manter essa história viva: só eu e o Matheus (meu melhor amigo do colégio naquela época) não acreditávamos em deus. E assim, na 6ª série, ficou nítido para mim que eu era um ateu.

Eu sei da inconfiabilidade da memória, já ouvi falar dos mecanismos psicológicos que distorcem nossa memória. E, por isso mesmo, busco lembrar pelo menos dos períodos, para tentar situar os acontecimentos: em 2001, entrei na UFRGS (o número de matrícula eternizava o teu ano de entrada: "01"). Logo, de 1998 a 2000 eu estava cursando o 2º grau (agora Ensino Médio, e que antes já tinha sido o Ginásio). De 1990 a 1997, cursei o 1º grau todo no Instituto, fora o período que morei em Brasília: a 2ª série (1991) e metade da 3ª (primeiro semestre de 1992). Em 2003, fiz vestibular de novo e entrei pra biologia. E foi aí, entre 2001 e final de 2002, que algumas grandes questões da 'vida, do Universo e tudo mais' começaram se tornar irresistíveis. E lendo vorazmente em livros e na Internet, comecei aquele fluxo de referências de um site levando a um livro, de um livro indicar outro, de um autor citar outro, até não se saber mais como se desenrolou a trajetória toda até alguma referência em particular. O enigma da vida existir em nosso Universo é uma das 'grandes questões da vida, do Universo e tudo mais', e o tema da evolução começou a tornar-se recorrente nas minhas leituras. Por fim, descobri o livro "O Gene Egoísta", do biólogo Richard Dawkins.

"So, I was already familiar with and (I’m afraid) accepting of, the view that you couldn’t apply the logic of physics to religion, that they were dealing with different types of ‘truth’. (I now think this is baloney, but to continue...) What astonished me, however, was the realization that the arguments in favor of religious ideas were so feeble and silly next to the robust arguments of something as interpretative and opinionated as history. In fact they were embarrassingly childish. They were never subject to the kind of outright challenge which was the normal stock in trade of any other area of intellectual endeavor whatsoever. Why not? Because they wouldn’t stand up to it. So I became an Agnostic. And I thought and thought and thought. But I just did not have enough to go on, so I didn’t really come to any resolution. I was extremely doubtful about the idea of god, but I just didn’t know enough about anything to have a good working model of any other explanation for, well, life, the universe and everything to put in its place. But I kept at it, and I kept reading and I kept thinking. Sometime around my early thirties I stumbled upon evolutionary biology, particularly in the form of Richard Dawkins’s books The Selfish Gene and then The Blind Watchmaker and suddenly (on, I think the second reading of The Selfish Gene) it all fell into place. It was a concept of such stunning simplicity, but it gave rise, naturally, to all of the infinite and baffling complexity of life. The awe it inspired in me made the awe that people talk about in respect of religious experience seem, frankly, silly beside it. I'd take the awe of understanding over the awe of ignorance any day."
- Douglas Adams


Alguns momentos parecem alterar o rumo de tudo o que vem a seguir, são os grandes momentos da vida. Como eu já disse lá no início, não passei por essa fase agnóstica, mas me identifico totalmente com o 'tesão' de finalmente entender (o "cair da ficha") sobre a importância, elegância e poder de explicação da teoria darwiniana de evolução por seleção natural. Não pode ser coincidência que evolução e ateísmo costumam andar juntos, pois uma coisa leva à outra. Como escreveu Richard Dawkins: "antes de Darwin, o ateísmo até poderia ser logicamente sustentável, mas que só depois de Darwin é possível ser um ateu intelectualmente satisfeito ('O Relojoeiro Cego', p.24-25). Terminado o livro, decidi que eu tinha que ser biólogo.

A memória deve ser ajudada sempre que possível: agendas, celulares e cantos de folha de caderno são bons meios de manter registros além das sinapses cerebrais. Comprei um livro indicado por um professor de bioquímica no 2º semestre da biologia: 'O Acaso e a Necessidade', de Jacques Monod. Houve um bom intervalo entre a dica, anotada no canto da folha do caderno, e a compra. O livro estava fora de impressão, de modo que o procurei para comprar e não achei. Eu chutaria que algo cerca de um ano depois encontrei o livro por acaso na livraria de usados, junto ao Xerox do DCE no campus do Vale: uma edição antiga, das Publicações Europa-América. Comprei sem hesitar e comecei a ler no mesmo dia. Minha memória era de que fora um livro muito bom, que costurava numa mesma linha de raciocínio evolução e biologia molecular, assuntos que me fascinaram durante a faculdade.

Algumas memórias vão-se esquecendo, mas um único e imprevisível estímulo pode reavivar todo um conjunto de memórias interligadas que parecia perdido. Dias atrás, separei alguns livros para levar à praia do Rosa, decisão que se mostrou muito acertada dada a quantidade de chuva que caiu por lá. Entre eles, 'O Acaso e a Necessidade', que me fez lembrar porque a evolução por seleção natural é uma teoria científica única dentre todas as elegantes e incríveis teorias que a ciência já desenvolveu. (Uma confirmação respeitável desse fato foi escutar Steven Weinberg, prêmio Nobel e autor dos livros de física mais fodas que eu já li, admitir isso - lá pelos 10:40.) E o livro do Jacques Monod me relembrou disso (no peculiar estilo francês), que 'O Gene Egoísta' foi o primeiro a me ensinar: como somente a teoria da evolução por seleção natural consegue a façanha de conciliar a visão de mundo naturalista, materialista e objetiva da ciência com o surgimento e a existência da complexidade impressionante de uma bactéria, planta, fungo, animal ou vírus.

As melhores memórias, dizem os de índole otimista como eu, ainda estão por serem vividas. Divisando logo ali um cume mais alto, renovo minha satisfação de ser biólogo, de ter o privilégio de entender alguma coisa sobre ciência e evolução e de poder trabalhar com isso. E posso dizer que nada disso foi graças a deus. Pelo contrário até.


"A biologia ocupa, entre as ciências, um lugar simultâneamente marginal e central. Marginal na medida em que o mundo vivo constitui apenas uma parte ínfima e muito "especial" do universo conhecido, de tal sorte que o estudo dos seres vivos não parece deva jamais manifestar leis gerais, aplicáveis além da biosfera. Mas se a ambição última de toda a ciência é bem outra, como creio, a de explicar a relação do homem com o universo, então será necessário reconhecer à biologia um lugar central, visto que é, de todas as disciplinas, aquela que tenta ir mais directamente ao cerne dos problemas que serão necessários ter resolvidos, antes de podermos formular os de "natureza humana" em outros termos que não os metafísicos."
- Jacques Monod

Um comentário:

Pree disse...

Pena que a tua memória às vezes não funciona, principalmente para relembrar "as pequenas alegrias alheias"!
Pó de estrela, grão de areia, papel riscado, chuva no rosto e o mundo vive de gentileza, amor e comida vegana!