sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Adaptation and Natural Selection


Existe uma constante produção de livro e artigos que tentam mostrar que a Natureza é, no longo prazo e na média, benevolente e aceitável de acordo com algum inquestionável ponto de vista ético e moral. Por implicação, ela deve ser um guia apropriado para elaborar sistemas éticos e para julgar o comportamento humano. Em alguns casos, parece  que o "ame o próximo como a si mesmo" deverá resistir ou cair conforme o mutualismo ou o parasitismo for o fenômeno mais prevalente. Tentativas de demonstrar a benevolência da Natureza freqüentemente tomam a forma de mudança de nomenclatura. O assassinato de um cervo por leões da montanha significava "a natureza vermelha em dentes e garras" para uma geração de "darwinistas sociais". Para uma geração mais recente, virou a bondade da Natureza em evitar que os cervos se tornem tão numerosos que eles morressem de fome ou doenças. Para o próprio Darwin, existia uma parcamente definida "grandeza" em tais processos. Os fatos simples são que tanto a predação quanto a inanição são prospectos dolorosos para o cervo, e que o destino do leão não é mais invejável. Talvez a biologia poderia ter amadurecido mais rapidamente em uma cultura que não fosse dominada pela teologia judaico-cristã e pela tradição romântica. Ela poderia muito bem ter se servido da Primeira Verdade Sagrada do Sermão em Benares: "O nascimento é doloroso, a velhice é dolorosa, a enfermidade é dolorosa, a morte é dolorosa..." (atribuído a Buda por Burtt, 1955).

Esse livro - 'Adaptation and Natural Selection' escrito pelo biólogo George C. Williams e publicado em 1966 - é um dos melhores livros científicos que eu já li. O que é curioso sob certo ângulo, pois a biologia evolutiva historicamente é dominada por cientistas britânicos, e o mr. Williams é um norte-americano da gema. A ideia-chave defendida pelo livro é aquela que foi levada além por Richard Dawkins no seu 'O Gene Egoísta' de 1976: a seleção natural não atua de modo a promover o bem da espécie, e nem o bem do indivíduo; o sucesso reprodutivo é a única força-motriz da evolução adaptativa.  E é dessa visão que se deriva um ponto de vista pessimista sobre o mundo: contanto que os genes sigam sendo propagados, não 'importa' para a Natureza se sofrimento e dor seguem sendo infligidos nos portadores desses genes, os seres vivos. Pelo contrário até: o sofrimento e a dor evoluíram justamente por seleção natural para que os animais evitassem aquelas situações que colocassem em risco seu sucesso reprodutivo.

Um dia eu li em algum livro que quando um animal - o cervo, por exemplo - está sendo trucidado por predadores, o organismo libera uma carga elevada de endorfina na circulação, de modo que o animal não sente tanta dor enquanto está em vias de morrer. Esse é o tipo de hipótese totalmente em discordância com a teoria da evolução por seleção natural: o que ocorre nos minutos antes de um animal morrer não tem impacto sobre a propagação genética. Por isso, essa informação tem tudo para ser falsa. E a triste realidade é que o pobre do cervo muito provavelmente está sentindo uma dor lancinante enquanto os leões rasgam a sua carne. Buda é quem sabia mais.

Lembrei desse trecho do livro duas vezes nos últimos dias. Primeiro, quando entrei num hospital e fiquei quase depressivo com aquele ambiente emanando doença, dor e morte. Por sorte, eu estava indo na maternidade, mas até quando eu cheguei lá pensei que mesmo o nosso nascimento é permeado de dor e potenciais problemas. De mais a mais, todos nós vamos um dia ter que ir ao hospital por razões diferentes do nascimento de alguma criança, seja o internado nós ou as pessoas queridas por nós.

A segunda vez foi hoje, porque fiquei doente, então - por favor - deem um desconto no tom negativo do post.

3 comentários:

Luiz Augusto disse...

Ducaralho! Essa ideia-chave do gene egoísta parece mesmo algo que condiz com o mundo, me convence, mas mesmo assim não acho que o ponto de vista deva ser necessariamente pessimista. Se nego consegue passar os genes pra frente E sofrer pouco, melhor pra ele, e esse diferencial certamente fará que tal indivíduo seja mais bem sucedido que outros, a partir do momento que ele também consiga garantir menos sofrimento às suas parceiras.

Em relação à liberação de endorfina pelo organismo no momento que um animal é atacado, não se trata de um "ato de misericórdia", mas sim de uma última tentativa de reação, que visa a sobrevivência. Coincidentemente e por questões fisiológicas e químicas que desconheço, de fato a dor fica em segundo plano nesses surtos de endorfina/adrenalina.

Luiz Augusto disse...

Pensando mais a fundo, o fato da dor ficar em segundo plano certamente não é coincidência, porque assim o animal não se distrai com a dor enquanto luta pra sobreviver.

Vinicius disse...

Pois então, é pessimista pra quem acha que a Natureza é boa. Para quem toma a consciência de que a Natureza é 'indiferente', serve como um recado eterno de que só nós mesmos para nos salvarmos. E - apesar dos discursos contrarios, é exatamente o que estamos fazendo: moldando o mundo para o nosso conforto com prédios, eletricidade, remédios, flúor na água, previdência social, leis, etc...

E quanto ao caso da endorfina, a ideia que o texto passava era exatamente essa de benevolência da Natureza: uma anestesia quando tudo estava perdido. Estritamente pela lógica da seleção natural, a dor não pode ser (totalmente) anestesiada pois a função dela é exatamente motivar o organismo que a sente a escapar da situação causadora da dor. A dor tem uma função adaptativa, e ela deve ser maior quanto maior o risco para o sucesso reprodutivo.