terça-feira, 27 de julho de 2010

A Elegância do Ouriço


Presente é sempre um negócio arriscado, mas às vezes se acerta na mosca. E que grata surpresa ganhar de presente um livro, bom, e do qual nunca se tinha ouvido falar antes. Enfim, não fui eu quem ganhou o livro, foi a Morena. Mas só de ler o primeiro trecho já senti que a coisa era boa:

"Marx muda totalmente minha visão de mundo", declarou-me hoje de manhã o jovem Pallières, que, em geral, nunca me dirige a palavra.
Antoine Pallières, rico herdeiro de uma velha dinastia industrial, é filho de um de meus oito patrões. Derradeira eructação da grande burguesia empresarial – que só se reproduz por meio de soluços limpos e sem vícios –, ele estava radiante com sua descoberta, que me contava por reflexo, sem sequer pensar que eu conseguiria entender alguma coisa. Que podem entender as massas trabalhadores sobre a obra de Marx? A leitura é árdua, a língua, apurada, a prosa, sutil, e a tese complexa.
E foi aí que quase me trai, bestamente.
"Tem que ler a
Ideologia alemã", disse a esse cretino de parca verde-garrafa.
Para entender Marx e entender por que ele está errado, tem que ler
Ideologia alemã. É o pedestal antropológico sobre o qual se construirão todas as exortações a um mundo novo e no qual está aparafusada uma certeza fundamental: os homens que se perdem por desejar, melhor fariam se se limitassem às suas necessidades. Num mundo em que o húbris do desejo for amordaçado, poderá nascer uma organização social nova, isenta de lutas, opressões e hierarquias deletérias.
"Quem semeia desejo colhe opressão", estou prestes a murmurar como se só meu gato me escutasse.
Mas Antoine Pallières, cujo bigode embrionário e repugnante não tem nada de felino, olha para mim, duvidando de minhas estranhas palavras. Como sempre, sou salva pela incapacidade dos seres humanos de acreditar naquilo que explode as molduras de seus pequenos hábitos mentais. Uma zeladora não lê a
Ideologia alemã, e, por conseguinte, seria incapaz de citar a décima primeira tese sobre Feuerbach.
Além disso, uma zeladora que lê Marx está, necessariamente, de olho na subversão, e se vendeu a um diabo que se chama Confederação Geral dos Trabalhadores, a CGT. Que consiga lê-lo para a elevação do espírito é uma incongruência que burguês nenhum admite.
"Recomendações à senhora sua mãe", resmungo fechando a porta na cara dele e esperando que a disfonia das duas frases seja abafada pela força dos preconceitos milenares.


Comprei um pra mim, e já li uns três quartos.

2 comentários:

Pree disse...

Livros para mudar a vida (e de vida). Pq não?!

Vinicius disse...

Terminei o livro: é bom mesmo!