sábado, 2 de outubro de 2010

Mente, Linguagem e Sociedade


Na maioria das principais questões filosóficas, existe aquilo que poderíamos chamar, empregando uma metáfora usada para computadores, de posição-padrão. Posições-padrão são as opiniões que temos antes da reflexão, de modo que qualquer desvio delas exige um esforço consciente e um argumento convincente. Eis as posições-padrão para algumas questões principais:

• Há um mundo real que existe independente de nós, independente de nossas experiências, pensamentos, linguagem.
• Temos acesso perceptivo direto a esse mundo por meio de nossos sentidos, especialmente o tato e a visão.
• As palavras da nossa linguagem, palavras como coelho ou árvore, têm em geral significados razoavelmente claros. Por causa de seus significados, podem ser usadas para nos referirmos aos objetos reais do mundo e para falarmos deles.
• Nossas afirmações são, em geral, verdadeiras ou falsas dependendo de corresponderem ao modo como as coisas são, ou seja, aos fatos do mundo.
• A causalidade é uma relação real entre objetos e estados de coisas do mundo, uma relação pela qual um fenômeno, a causa, provoca o outro, o efeito.

Em nossa vida diária, esses pontos de vista são tão aceitos que penso ser enganoso descrevê-los como "pontos de vista" – ou hipóteses, ou opiniões. Por exemplo, não é minha opinião que o mundo real existe, da maneira que é minha opinião que Shakespeare era um grande dramaturgo. Essas pressuposições geralmente aceitas fazem parte do que chamo de Pano de Fundo de nosso pensamento e linguagem. Uso maiúsculas para que fique claro que estou empregando o termo quase como se fosse um termo técnico, e mais adiante explicarei seu significado com maiores detalhes.
Grande parte da história da filosofia consiste em ataques a posições-padrão. Os grandes filósofos muitas vezes são famosos por rejeitarem aquilo que todo mundo aceita. O ataque característico começa apontando os enigmas e paradoxos da posição-padrão. Aparentemente, não podemos adotar a posição-padrão nem acreditar em uma série de outras coisas em que gostaríamos de acreditar. Portanto, a posição-padrão deve ser abandonada e substituída por algum ponto de vista novo e revolucionário. Alguns exemplos famosos são a refutação por David Hume da ideia de que a causalidade é uma relação real entre eventos do mundo, a refutação pelo bispo George Berkeley do ponto de vista segundo o qual um mundo material existe independentemente das percepções que temos dele e a rejeição de Descartes, bem como de muitos outros filósofos, do ponto de vista segundo o qual podemos ter um conhecimento perceptivo direto do mundo. Mais recentemente, presume-se que Willard Quine tenha refutado o ponto de vista segundo o qual as palavras, em nossa linguagem, têm significados determinados. E vários filósofos pensam haver refutado a teoria da verdade como correspondência – o ponto de vista segundo o qual, se uma afirmação é verdadeira, geralmente o é porque existe algum fato, situação ou estado de coisas no mundo que a torna verdadeira.
Acredito que, em geral, as posições-padrão são verdadeiras, e que os ataques contra elas são equivocados. Penso que este é certamente o caso para todos os exemplos que acabo de apresentar. É pouco provável que as posições-padrão tivessem sobrevivido durante séculos, às vezes durante milênios, aos percalços da história da humanidade se fossem tão falsas quanto os filósofos as pintam. Mas nem todas as posições-padrão são verdadeiras. Talvez a mais famosa posição-padrão seja a de que cada um de nós é formado por duas entidades separadas, um corpo de um lado e uma mente ou alma do outro, e que essas duas entidades estão juntas durante nossas vidas, mas são independentes no sentido de que nossas mentes ou almas podem se separar  de nossos corpos e continuar a existir como entidades conscientes mesmo depois de nossos corpos serem totalmente aniquilados. Esse ponto de vista se chama "dualismo". Penso que ele é falso, e direi por que no Capítulo 2. Em geral, no entanto, as posições-padrão têm mais chances de estarem certas do que suas alternativas, e é um fato triste na minha profissão, embora ela seja maravilhosa, que os filósofos mais famosos e mais admirados sejam muitas vezes aqueles que têm as teorias mais absurdas.


Que alívio ler isso de um filósofo (John R. Searle, mais especificamente)! Depois reclamam que não se leva a filosofia a sério: muitas vezes parece uma competição de quem consegue levantar os argumentos mais convincentes para defender a posição mais absurda. Eu acredito que é possível sim fazer boa filosofia, desde que não se negue o óbvio (as posições-padrão de Searle) e se leve em consideração o nosso conhecimento científico sobre o mundo (É sempre uma boa ideia nos lembrarmos dos fatos, nos lembrarmos daquilo que realmente sabemos.). É o que fazem Peter Singer, Colin McGinn, Daniel Dennett, Michael Shermer, Julian Baggini e muitos outros.

3 comentários:

Luiz Augusto disse...

Essas posições-padrão são perenes exatamente pelo fato delas serem práticas para a abordagem de tudo que é percebido e contabilizado (vide a segunda posição-padrão da lista). É muito importante que elas sejam reconhecidas como eficientes e aplicadas, entretanto, não é interessante que sejam tidas como verdades irrefutáveis. Já somos de fato limitados pelos nossos sentidos, inclusive descobrimos que há forças invisíveis e imperceptíveis aos sentidos diretos que aprendemos a domar para nosso benefício (dentre elas o eletromagnetismo), mas certamente não descobrimos e compreendemos TODOS os tipos de forças que de fato podem estar embaixo de nossos narizes, aguardando sua descoberta. O rompimento (na maioria das vezes, teórico) com posições-padrão favorece a percepção e a derrubada de paradigmas.

A posição-padrão que mais me chama atenção dentre as citadas é a quarta: “Nossas afirmações são, em geral, verdadeiras ou falsas dependendo de corresponderem ao modo como as coisas são, ou seja, aos fatos do mundo.” É de fato uma posição-padrão que tem ótimas aplicações práticas, comprovadas por experiências empíricas milenares. Mas faço a seguinte pergunta: Quem define o modo como as coisas são e os fatos do mundo? Não há como nos livrarmos do fato de que, para nós, quem as define somos nós mesmos. O mundo existe independentemente de nós, mas nossas definições não existem independentemente de nós, e não sabemos de que maneira o mundo seria definido através de outros sentidos. Destaco que não me refiro somente à nossa percepção limitada do mundo externo, mas à nossa percepção limitada de nós mesmos. Temos os processadores mais avançados, potentes e complexos dentro de nossas cabeças, mas nosso hardware sensor, comparado ao processador, é totalmente desatualizado, e nossa memória RAM ainda mais desatualizada em relação ao hardware sensor, pois somente tem capacidade para processar em tempo real uma parte ínfima dos dados captados, enquanto o processador os percebe em sua totalidade e os aplica em nossas ações de maneira paralela à memória RAM.

O assustador do rompimento com posições-padrão é que esse processo nos obriga a explorar questões que vão além do que é, como o nome diz, padrão. É importante destacar também que o filósofo somente foi capaz de expressar ditas posições-padrão em palavras e tratar delas com argumentos porque no passado fizemos descobertas importantes que permitiram isso, as quais romperam com posições-padrão da época, dentre elas, que a Terra não é o centro do universo e que o homem não é o centro da Terra (a Terra não foi criada por um ser supremo somente como “presente” para o homem) e que o homem não é sequer o centro de si (devido à desatualização entre processador e hardware) sendo essa última a mais recente e a que menos compreedemos.

Esse livro deve ser ducaralho, escrevi o texto acima baseado somente no trecho que você colocou aí, com o qual já discordei em parte, mas nota-se que a obra deve ir muito além e que o autor deve fazer muitas outras ressalvas.

Vinicius disse...

Claro, de fato o autor vai além na discussão. Pela argumentação que se segue no livro, ele defende com maior ênfase a primeira posição-padrão no sentido em que ela é condição essencial para que se possa discutir qualquer coisa. Muito provavelmente estou usando palavras piores, mas a ideia é que se duas pessoas não partem do pressuposto que existe um mundo real externo à mente e aos pensamentos humanos, então a discussão não tem nem inteligibilidade: como discutir como as coisas são, se nem se acredita que existam essas "coisas"?

Enfim, coloquei esse trecho porque muitas vezes tu vais ler alguns filósofos que procuram negar o óbvio. Pode ser interessante como um exercício para questionar os nossos pressupostos básicos, mas não me parece o tipo de argumentação que vá levar a alguma conclusão frutífera e aplicável na prática. Por exemplo: o cara questiona a existência do mundo real. Mesmo que ele tenha argumentos muito convincentes e mostre as incoerências de se acreditar num mundo real, quem vai alterar as suas práticas cotidianas por essa discussão?

Prefiro os filósofos que discutem as questões pragmáticas: ok, o mundo real existe e temos todas essas limitações para descobrir como ele de fato funciona. A ciência é o melhor meio que temos para descobrir como esse mundo real funciona, exatamente porque ela reconhece essas limitações. Então, com base nisso, vamos discutir os problemas que interessam do mundo real.

Luiz Augusto disse...

Exato, essa aí deve ser a regra para a prática. Mas é importante que existam discussões aparentemente infrutíferas e irracionais pelo simples fato de representarem uma maneira a mais de raciocínio. Esse argumento se alinha, inclusive, com o processo de mutação genética: elas são aleatórias assim preservam possibilidades infinitas que se traduzem em maiores chances de sobrevivência na prática, no longo prazo, (e ignoram totalmente a experiência de curto prazo do indivíduo ou animal - lembrei do que falamos no post Adaptation and Natural Selection). Resumindo e me valendo da analogia, não é interessante, a longo prazo, que sejamos filosoficamente "Lamarckistas", apesar de ser possível e prático adotar abordagens até percebidas como tal*, mas que de fato fazem parte de um conjunto infinito de abordagens possíveis, que no caso podemos chamar de "Darwiniano".

*Uma pessoa pode passar toda a vida seguindo uma filosofia "Lamarckista" sem nem mesmo se dar conta disso.